08 agosto, 2008

Meu Livro Inexistente

Depois de muito ouvir sobre as maravilhas da minha tese de graduação, decidi conter minha depressão pós-parto acadêmico e achei que esse filho pródigo deveria ser publicado. Bom, não foi. Nem sei se será. Passou o tempo, talvez tenha perdido a oportunidade.

Queria muito saber porque é tão difícil dar a cara à tapa ou a mão à saudação no mundo das opiniões editadas. Preciso de terapia. De mesa de bar, preferencialmente.

Já publiquei aqui o resumo da ópera. Em homenagem ao natimorto, deixo outro tanto do que a dúvida engoliu - contexto histórico, porque é facinho e eu quero ser popular:


(...) Assim foram influenciados vários outros tratados normativos, tanto no que concerne às constituições dos próprios estados norte-americanos, quanto como inclusive viera a ocorrer nas declarações de direito da Revolução Francesa, gravadas do ardor da insurreição ali havida, e que, por isso, já haviam tratado com acuidade a questão, pelo que pregavam abertamente o direito de “resistência à opressão”, tido como um verdadeiro instrumento de revolução.

O mesmo não ocorre, mui nitidamente, com as constituições dos países socialistas, mesmo contemporâneas historicamente, como não poderia deixar de ser se levarmos em conta que, contemplando a resistência como direito assegurado do povo, não estaria fazendo jus à doutrina do determinismo histórico havido nas construções socialistas de então, que se valiam do revolucionarismo para manter-se no poder. Ora, uma vez facultado o direito de resistência, certamente haveria de se questionar a legalidade daquele estado.

Ainda assim, esse contexto histórico de sucessivas menções ao direito de resistência em textos formais de declaração de estados vem marcar a atmosfera onde Thoureau desenvolvera o seu pensamento crítico, que mais tarde culminaria na sua defesa do que, a partir dali, se chamaria desobediência civil.

O levante do autor contra o poder político norte-americano, constituído num governo escravocrata e segregacionista, foi culminado pela declaração de guerra contra o México (1846-1848), que tinha o escopo de incorporar ao território dos Estados Unidos da América (EUA) partes do país vizinho que já haviam colonizado, as quais correspondiam aos estados do Texas, Novo México e Califórnia, uma guerra considerada injusta, leviana, intentada tão somente tendo em vista os interesses dos donos de escravos do sul do país, que, assim, converteriam mais território onde a escravidão era legalizada.

Foi o momento em que decretou que o estado norte-americano não mais constituía o legítimo representante popular, já que, muito distante do ideário da independência recém-conquistada, havia se tornado nada mais do que um estado escravocrata, repressor e infiel à democracia da qual era constituído.

O que faz Thoureau ser determinante para o estudo da desobediência civil não se vale apenas pelo implemento desta nova nomenclatura, mas por ele ter trazido, junto com ela, uma série de características do que virá a ser uma teoria da desobediência, quando aduz o seguinte:

Minoria: A desobediência civil era um fenômeno das minorias, ou seja, até então, a premente estrutura do contrato social e da democracia liberal que era vigente à época eram determinantes da concessão do poder aos desígnios da maioria, que era quem detinha o poder de deliberar em nome de todos, e apenas a partir dessa deliberação majoritária é que se processava a atuação estatal.

A idéia de Thoureau é a de que, não obstante ao mandamento da estrutura traçada em face do contratualismo de Rousseau, não se poderia falar em poder majoritário, uma vez que a tal “maioria” não mais representava a sociedade; era o resultado de uma democracia doente, que segundo o autor, degenerava essa forma de atuação social, uma vez que por “maioria” correspondia, em verdade, uma casta de interesses particulares, que fazia parte de uma sociedade corrompida pela política individualista daquela época. Nesse aspecto, a maioria exercia o poder, antes que por uma questão de legitimidade, mas pela força.

É por isso que a doutrina da desobediência civil fora destinada às minorias, até pelo requisito lógico de que, num estado democrático, o poder está originariamente depositado no povo pelo acordo da maioria, a qual decide os rumos do ordenamento jurídico a ser construído. Vale lembrar que dizer que a desobediência civil pode ser intentada pela minoria não exclui uma atuação massiva da população nesse sentido, quando a degeneração política das formas de governo alcança nível tal, a ponto de danificar inclusive a condição social de fonte do poder estatal.

Thoureau afirma, inclusive, que, por outro lado, a revolução se dá dentro de cada um, defendendo que a mudança nas estruturas postas pode ocorrer apenas em face do agir de uma única unidade social; para ele, um cidadão apenas, agindo em nome de seus valores morais para converter uma norma injusta em instrumento de justiça social, já estaria, por si só, levando a cabo a “revolução civil”.

Lei injusta: A determinação dos casos pertinentes à desobediência civil foi fulcrada na idéia da lei injusta, sendo assim as leis eminentemente aprisionadoras dos homens, que eram o exórdio à tirania. Assim, o cidadão deveria expor as leis ao seu julgo pessoal, para que, examinadas as suas cominações, pudesse determinar a justiça ou não daquele ato normativo, para, a partir de então, dever-lhe obediência ou apresentar-se-lhe em contrário.

A concepção de lei injusta difere na medida em que confrontamos os pensadores do tema, e será objeto de discussão no avançar deste trabalho, mas, preliminarmente, o que Thoureau trata como injustiça de uma lei poder ser traduzido como o confronto entre a lei escrita (positiva) e a consciência individual: cada um tem o poder soberano de decidir o modo com qual comporta-se face à colação legal, em vez de passar-se como figura passiva diante do ordenamento.

Não-vilolência: talvez seja esse o grande marco e derradeiro efeito do pensamento de Thoureau sobre a desobediência civil, assim nominada, posto que, no nosso entender, a prescrição de que a ação de desobediência deveria ser pacífica para que fosse efetivamente válida, tida como tal, afugentou a ilegalidade gritante que havia em grande parte dos movimentos que pregavam a resistência, visto que não mais incorriam em sanções legais infringentes, notadamente delitos penais, como era de praxe.

E não poderia ser diferente: Thoureau era um revolucionário, mas a sua luta política havia sido desencadeada pela luta contra um Estado que subjugava o próximo pela força, conduzindo guerras injustas e que consagrava a escravidão negra, mais precisamente nas colônias do sul daquele país, onde se praticava o total desrespeito aos direitos civis e torturas e assassinatos eram comumente encenados. A partir disso, o ensaísta decidiu pela revolução pacífica, baseada em atos de consciência individual, que imprimissem justiça em face das “injustiças legalizadas” por uma maioria inerte.

Assim ele o fez, especializando as condutas que passariam a constar como desobediência civil e deteriorando os argumentos em seu desfavor que se baseavam no uso ilícito da violência nos atos de resistência e por vezes os conduziam ao vandalismo, mas tratava de contrapor a isso a idéia de que a violência poderia ser usada, em última análise, quando a situação se apresentasse extrema e o uso da força fosse imperativo.

O caráter eminentemente pacífico da desobediência civil veio a delinear de vez o instituto jurídico assim entendido, posto que, a partir deste ponto, é possível extrair o escopo desse movimento social, qual seja, a modificação, extinção ou implementação da norma ou ato normativo tidos como injustos, afastando, com isso, o pensamento primeiro de que a resistência visava o fim do Estado e do poder constituído, a construção de um novo ordenamento jurídico ou até mesmo o intento do anarquismo , apesar da desobediência civil ter sido determinante, inclusive, em movimentos anarco-pacifistas, todavia incidentalmente.

Com a determinação da desobediência civil como movimento de resistência baseado num ideário de justiça pertinente à consciência moral do individuo, exercida em face de um governo injusto ou ineficiente , construído através da via pacífica, Thoureau consignou um fenômeno político-social que atravessaria a sua época, uma crítica ao Estado Liberal e ao processo democrático falidos, sendo sucedido por obras como o Manifesto Comunista de Karl Marx (1818-1883), lançado no mesmo ano que a obra de Thoureau, e por movimentos em favor da não-violência, tais os liderados por Tolstoy e Gandhi:

A semente da não-violência, para combater a tirania e as leis injustas, plantada por Thoureau, inspirou grandes cruzadas pela paz e liberdade dos povos, como a construção de Leon Tolstoy , escritor russo, autor, entre outras obras, de Guerra e Paz (1865-69) e Ana Karenina (1875-77). Sua obra máxima, entretanto, fora O Reino de Deus está em Vós (1894), que abriu as portas do chamado anarco-pacifismo, um movimento em defesa das liberdades individuais e dos direitos fundamentais, insurgido em face da violência pela força direita, e ainda contra aquela violência exercida pelo constrangimento do cidadão e a precarização das suas garantias individuais.

Leon Tolstoy esculpe, então, a desobediência civil do serviço militar e ao pagamento de impostos financiadores da guerra, ou sempre que incrementassem alguma forma de violência. A idéia é que a violência, em última analise, determina a opressão do povo, notadamente das classes privilegiadas sobre o restante da população; o novelista defende a desobediência civil como forma de combate à opressão do capitalismo, à violência e à injustiça e ilegitimidade do Estado tirânico.
Essa é a sua concepção sobre o cristianismo, e é assim que o revolucionário dissemina os ensinamentos de Cristo e implementa a resistência pacífica com a base moral religiosa, pelo que condena qualquer ascensão bélica e prega a distribuição da propriedade, determinando “o cristianismo não como uma religião mística, mas como uma nova teoria de vida”, subtítulo do livro O Reino de Deus está em Vós.

Em seu exemplo seguiu-se a trajetória do arnarco-pacifismo, o qual contou com revolucionários como Errico Malatesta , que chegou a descrever o anarquismo como um movimento cuja essência está em remover a violência das relações humanas, e que a violência é “um mal em si mesma, (...) justificada apenas quando ela é necessária para defender-se a si mesmo e aos outros da violência”.

É aqui onde Tolstoy deixa sua marca contundente, recriminando toda e qualquer opressão ou manifestação de violência, mesmo a do oprimido em face do opressor, como descreve em carta a Ernest Howard Crosby, datada de 12 de janeiro de 1896, que só vem a corroborar com essa corrente não-violenta, proclamando:

"A doutrina cristã não prescreve nenhuma lei a nenhum homem; não diz ‘siga estas e aquelas leis, temendo a punição, e todos serão felizes’, mas explica a cada indivíduo sua posição particular no mundo e mostra-lhe o resultado especifico dessa posição (...) Todas essas opiniões tratam somente da questão a respeito do que aconteceria aos povos se todos fossem impelidos a cumprir a lei da não-violência; mas, em primeiro lugar, é totalmente impossível compelir todos os homens a aceitar a lei da não-violência, e, em segundo lugar, se isso fosse possível, seria a mais clara negação do próprio princípio que está sendo estabelecido."

Foi também por meio de uma carta, escrita a um jornal hindu, intitulada Uma Carta para um Hindu (A Letter to a Hindu), que as idéias de resistência não violenta de Tolstoy foram introduzidas a Mohandas Gandhi, que vivia na África do Sul nessa época e que, a partir de então, manteve uma farta correspondência com o novelista russo, ao passo que iniciava a sua jornada como ativista político da não-violência.

Thoureau descrevia o estado ideal como aquele onde não há nenhuma lei baseada em sanção, ou seja, nenhuma forma de opressão fosse posta sobre o homem, “o estado que não governa de modo algum”, definido como o estado de natureza, sem poder estruturado. Mas essa sociedade não subsiste sem que haja uma estrutura governamental que lhe de suporte e que traduza da forma mais hábil possível o poder do povo sem o uso direito da violência. Mahatma Gandhi (1869-1948) , então, posicionou-se no caminho da desobediência civil, exercida pela não-violência, como a chave para reverter os problemas experimentados pela democracia e devolver ao povo o seu lugar legítimo de detentor do poder.

Movimentava-se através da satyâgraha, a resistência não violenta através de passeatas, protestos e reivindicações generalizadas em favor dos direitos fundamentais e do estabelecimento da democracia representativa, ou ainda por meio da asahayoh, a não-cooperação, que consistia no boicote a certos produtos frutos do capitalismo, com o intuito de pressionar os donos do capital, atravancar a economia e forçar a casta dominante ao respeito e a concessão dos direitos civis de seu povo.

Essa ação de desobediência, uma vez pacífica, era também intentada com a consciência de que, mesmo sob violência, seus participantes não reagiriam aos opressores, remetendo ao conceito dos contratualistas, que só vêem certo nível de aceitação da desobediência civil se o seu ator estiver certo de sua punição, e mais ainda, estiver de acordo com ela. É a posição do senador Philip A. Hart: “(...) qualquer tolerância que eu possa sentir para com o contestador depende de sua boa vontade em aceitar qualquer punição que a lei venha a impor”.

O movimento de resistência não violenta de Gandhi, assim como os que o influenciaram já falavam, era o instrumento que a população oprimida lançava mão para retomar o poder governamental perdido durante o concilio entremeado do capital com o regime democrático, ou pela própria ausência deste regime – no caso da Índia –, fazendo modificar leis injustas e “humanizando” as ações estatais, de acordo com a moral, notadamente a busca da justiça da alma de cada cidadão. Albert Einstein escrevera sobre Gandhi: “As gerações futuras, provavelmente, mal acreditarão que alguém assim já andou em carne e osso sobre essa terra”.



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