16 abril, 2007

Os Poréns de Antônio Vieira

Quando o Padre Antonio Vieira desembarca a primeira vez com sua família, de Portugal para a cidade da Bahia, ainda não se havia despertado nele a vocação religiosa. Sua vida de “brasileiro” foi volteada pela questão indígena, dos que viviam à costa e que foram expulsos, de onde depois foi também o expulsado.

Na Companhia de Jesus, Vieira foi pai e algoz; quando começou a escrever seus sermões, refletiu sobre a verdade, virtude certamente oposta à mentira, dizendo que no Brasil até o céu mente (“o céu é uma mentira azul”), como se houvera escrito hoje de manhã, e não há quatro séculos...

Ironias à parte, lhe cabe a crítica da doutrinação pervertida em dominação, baseada em um processo que começou bem antes, com os gregos, e que tem seus respectivos fundamentos em cada período histórico, o da desumanização de um povo.

Os gregos, e todos os seus contemporâneos, consideravam seus escravos como coisas, objetos desprovidos da condição humana e, portanto, passíveis de valoracao em dinheiro, compra, venda, troca, destruição.

Desumanizar é a ferramenta de muitos e muitos processos de exploração do homem sobre o homem, antes de Vieira os gregos, depois dele os nazistas, cada um excusado por seus próprios motivos, mas a teles de todo o processo é a mesma: uma excusa para a barbárie.

Antônio Vieira não cria, como faziam os Senhores escravistas, que os índios (e negros) não tinham alma, em parte o que o fez chocar com muitos colonos, mas os tinha como selvagens endemoniados que careciam viver "dignamente", vestir roupas e não idolatrar o sol para poder merecer o Paraíso cristão; era contra a escravidão indígena, mas consentia com ela nas condições enunciadas por Francisco Vitória, famoso abolicionista ibérico, em que índios e negros poderiam ser explorados "em acordo com las leis da igreja". Esses poréns aparecem reiteradamente em suas convicções: abolicionista ma non troppo.

Pecava porque apoiava um dos maiores massacres que uma cultura já experimentou ao longo da História, pervertia a lógica de seu Deus porque não respeitava os costumes e as tradicões de um povo, muito anterior à chegada de portugueses no Brasil, que era tão sociedade quanto qualquer outra sociedade.

Não obstante, toda doutrina tem seu tom de dominacão, toda fé cega é totalitária, e Antônio Vieira foi um grande orador e pensador da causa indígena num tempo de Inquisição, colonialismo e navios negreiros. Escreveu suas possibilidades e reconheceu suas impossibilidades.

Seus Sermões são de fato obras de arte. Com grande consciencia, escreveu, no Sermão da Quarta Dominga do Advento:

“Comove-me muito mais a imagem dos meus pecados do que essa imagem de Cristo crucificado. Porque diante da imagem de Cristo crucificado, eu sou levado a ensoberbecer-me por ver o preço pelo qual Deus me comprou. Mas diante da imagem dos meus pecados, eu sou levado a apequenar-me, por ver o preço pelo qual eu me vendi. Quando vejo que Ele me comprou com todo o seu sangue, eu não posso deixar de pensar que eu sou muito, eu valho muito. Mas quando vejo que eu me vendi pelos nadas do mundo, aí penso que sou nada, valho mesmo é nada.”

12 abril, 2007

Copa do Mundo dos Filósofos [Philosopher's World Cup]

Tenho que admitir: eu adoro humor inglês.

Não é porno-chanchada nem citcom, mas eu acho que o humor inglês combina tanto com a ironia quanto com o pastelão, um humor inadvertidamente formal (impossível não sentir a elegância do acento britânico) e sem a autopiedade do humor brasileiro, por exemplo: eles riem do savoir faire do inglês médio, das suas inabilidades sociais e do seu formalismo démodè, de uma maneira quase ingênua, muitas vezes sem graça, mas sempre interessante.

O melhor desse humor inglês é o Monty Python, o qual, imagino, dispensa comentários. Dessa vez, quero mostrar-lhes um sketch onde se trava uma partida de futebol entre Grécia e Alemanha, que teria lugar durante a Copa do Mundo que se realizou em Munique, em 1972. Era a grande final.

As seleções são formadas pelos filósofos, respectivamente, gregos e alemães, e se desenrola tendo em conta as ideologias de cada jogador, motivações as quais são narradas passo a passo pelo locutor (de intusiasmo igualmente inglês), e mesclam o escracho com a inteligência dos autores em vincular tendências filosóficas e passes de futebol.

A Alemanha, que entra primeiro no estádio, vem escalada da seguinte forma:

1 LEIBNITZ
2 KANT
3 HEGEL
4 SCHOPENHAUER
5 SCHELLING
6 BECKENBAUER
7 JASPERS
8 SCHLEGEL
9 WITTGENSTEIN
10 NIETZSCHE
11 HEIDEGGER

(A filosofia germânica representada desde o "Idealismo Alemão" até a "Escola de Frankfurt", e mais além.)

Depois, a seleção grega, que vem com:

1 PLATÃO
2 EPITETO
3 ARISTÓTELES
4 SÓFOCLES
5 EMPEDOCLES DE ACRAGA
6 PLOTIN
7 EPICURO
8 HERACLITO
9 DEMOCRITO
10 SÓCRATES
11 ARQUIMEDES

Dispensam comentários. Só aponto que Plotin não era grego, mas egípcio, que é algo que eu prontamente deixo passar (quem sou eu...), dado o todo da coisa.

O locutor começa dando a formação dos times: "os alemães vêm num 4x2x4, Leibnitz é o goleiro, seguido por Kant, Hegel, Schopenhauer e Schelling na defesa, centro-avantes Schlegel, Wittgenstein, Nietzsche e Heidegger, e ataque um duo, Beckenbauer e Jaspers": Para quem ainda não havia notado, o (verdadeiro) jogador da seleção alemã está escalado no meio dos filósofos, e o locutor adverte, com essa ironia intocável do Monty Python, que Beckenbauer foi tanto quanto uma surpresa na escalação do time.

E segue: A Grécia é mais defensiva, e vem com Platão no gol, Sócrates no ataque e Aristóteles como um ala que, nas palavras do locutor, está no alto de sua boa forma, e ressalta que a surpresa desse time é a inclusão de Arquimedes (que não era filósofo, e sim matemático e físico).

O árbitro é Confúcio (não à toa), e os bandeirinhas são Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Lhes deixo com o vídeo e volto a comentar, para não estragar a surpresa:



O narrador é impagável, enquanto a câmera mostra os jogadores em mais profunda contemplação e a bola está lá parada, na meta ("a bola, aí está a bola!"). Entre ele e o comentarista há a discussão de que ninguém fez gol até agora, a que replica dizendo "bom, pode não haver gol, mas seguramente não nos falta emoção nesta partida!".

Nietzsche começa a discurtir com o árbitro, Confúcio, alegando que ele não tem "livre arbítrio": essa é uma referência ao relativismo moral do autor, que utiliza o seu conceito de livre arbítrio para fugir de uma "moralidade escravizadora" e estabelecer o homem "Além do Bem e do Mal", de cujo livro homônimo vem essa teoria. Sem o livre arbítrio, o homem não escolhe, mas é levado a exercer uma consciência moral imposta pela sociedade, e vive em uma quimera, sua liberdade não existe e sua vontade não é interior, mas pensada desde fora e, só então, assimilada.

Por essa discussão, Nitzsche leva cartão e vemos começar a aquecer-se no banco de reservas nada menos que Karl Marx. Ele substitui Wittgenstein e entra em campo com ganas de jogar, até que... até que pára e inicia o mesmo processo de auto-absorção do pensamento filosófico, como os demais.

Não mais que de repente, Arquimedes tem uma idéia e grita "EUREKA!", as mesmas palavras que gritou correndo, desnudo pelas ruas de Atenas, quando descobriu a relação do volume dos corpos, ao entrar em sua banheira e notar que, ao fazê-lo, o volume do seu corpo fazia com que a água transbordara, e pensar que seu volume poderia ser medido pela quantidade de água dispersa desde aquele recipiente.

A grande descoberta ("Heureka" é o grego para descobrimento) de Arquimedes foi, imaginem, chutar a bola e começar, em fim, a jogar. Com ele, os gregos começam a bater bola, enquanto os alemães ainda pensam. Sócrates para Platão, para Arquimedes, para Sócrates... e GOLLLL!

Os gregos vão à loucura junto com a torcida do estádio, enquanto Hegel argumenta com o árbitro que "a realidade é tão-somente um conjunto de éticas não-naturalistas a priori" e kant também contesta, dizendo que "o imperativo categórico sustenta que, ontologicamente, só existe a imaginação", enquanto Marx afirma que foi impedimento.

Me destroço de rir com esse trecho, igual quando eu passava pelo departamento de matemática da universidade e estavam lá, professores e estudantes, morrendo de rir com uma equação. Vai entender... mas eu entendo e é fantástica a construção que faz o Monty Python com esses conceitos, todos coerentes à medida do possível, profundos e decisivos, para no final arrematar com Karl Marx pedindo impedimento...

E, com isso, Confúcio apita final de jogo. A Grécia é campeã mundial e o locutor, depois de falar outra vez do fantástico gol de Sócrates, indefensável para Leibnitz, ainda ressalta que a Seleção grega bateu nas semi-finais a grande máquina que era a seleção inglesa, que vinha com Bentham, Locke e Hobbes.

Em outro post, darei melhores direções acerca dos conceitos filosóficos expostos nesse sketch, que é, em fim, o que eu tento alcançar: às vezes de maneira acessível, às vezes de maneira inacessível mesmo, relacionar filosofía e o resto do mundo.

Só me resta acrescentar que, para mim, humor inglês pede palmas renascentistas.


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03 abril, 2007

Bilingüe

Aviso: este blog es eminentemente bilingüe: transita entre el portugués y el español... A veces está en francés, otras en inglés, casi nunca en alemán y casi siempre asesinando gramáticas cosmopolitamente.

 

Roberta Gonçalves, 2007 - We copyleft it!